CESEM – NOVA FCSH
Conferência
A voz dos Centauros: Música sacra renascentista enquanto transgressão ritualística
Luís Neiva é performer e investigador na área da Musicologia Histórica.
Em 2023 completou o Mestrado em Estudos Avançados em Ensemble Vocal na reputada Schola Cantorum Basiliensis (Suíça), depois de ter concluído, em 2022 o Mestrado em Interpretação de Música Antiga (Renascimento – Romântico), na mesma instituição. Actualmente, é aluno de Doutoramento em Ciências Musicais na Universidade NOVA FCSH, bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia e colaborador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM).
Foi co-coordenador científico do projeto “AD TENEBRAS: Lamentações e Responsórios para os Ofícios das Trevas no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra 1550-1630” organizado pelo ensemble Capella Sanctae Crucis e financiado pela DGArtes e pela iniciativa Caixa Cultura da Caixa Geral de Depósitos em 2023.
Enquanto investigador, os seus principais focos de interesse situam-se no cruzamento da Musicologia Histórica com os campos da Filosofia, Psicanálise e Teologia Radical.
Resumo da Conferência
Durante o Renascimento, os músicos não tinham a melhor das reputações. Testemunhos de comportamentos imorais e de desrespeito pelos princípios éticos mais básicos multiplicam-se.
À primeira vista, tais acusações parecem ser simplesmente descrições dirigidas a uma classe de pervertidos, como se apenas estes se tornassem músicos. Importa, no entanto, considerar: e se os horríveis pecados de que eram acusados não se encontrassem nas suas acções, mas na própria essência do papel que desempenhavam enquanto músicos?
Partindo desta questão, consideramos explorar o ritual religioso durante o século XVI como o acontecimento interpassivo por excelência, concebido como uma série de gestos vazios com a finalidade de evocar uma crença objetiva e universal, sustentando uma forte ordem simbólica. Grosso modo, experiência religiosa esvaziada de experiência religiosa.
Como pode então a música ser entendida neste contexto senão como um elemento inerentemente contraditório e até perturbador? Por um lado, a música sacra aceitou o seu papel ideológico ao conformar-se com as regras do jogo. A clareza na comunicação textual, a repetição ritualística, a exclusão de melodias provenientes de contextos seculares, etc., eram características altamente valorizadas pelas autoridades religiosas da altura, às quais a maioria dos compositores aparentemente obedecia. Por outro lado, ao exprimir os impulsos e paixões subconscientes de compositores e intérpretes e ao abordar as narrativas bíblicas através de uma espécie incompleta de mimese, a música ganhava um potencial transgressor incrivelmente poderoso, impregnando a liturgia de uma subjetividade que quebrava a sua aparência puramente funcional.
Abstract
During the Renaissance, church musicians didn’t have the best reputation. They were often accused of being immoral and completely devoid of the most basic ethical principles.
On the surface, such indictments seem directed solely at the individuals, as if only deviants became musicians, but what if the horrible sins they were accused of are not to be found in their actions but in the very essence of the role they perform as musicians?
Departing from this question, we deem to explore the religious ritual during the XVI century as the interpassive event by excellence, designed as what could basically be called a series of empty gestures with the purpose of evoking objective and universal belief and sustaining a strong symbolic order. Put simply, religious experience without the religious experience.
How then can music be understood in this context if not as something inherently contradictive and even disturbing? On one hand, sacred music accepted its ideological role by conforming to the rules of the game. Textual clarity, ritualistic repetition, exclusion of secular melodies, etc., were all valued by the religious authorities of the time and seemingly obeyed by the composers. On the other hand, by expressing the inner passions of both composers and performers and by approaching biblical narratives through an incomplete mimesis, music gained an incredibly powerful transgressive potential, imbuing the liturgy with a subjectivity that cracked its mask of pure functionality.