Titus Brandsma Instituut, Radboud University Nijmegen
Conferência
Disputa de Autoridade: Tradição e Experiência na Controvérsia entre Madame Guyon e Dom Innocent Le Masson
Lieven De Maeyer é investigador do Titus Brands Instituut (Nijmegen) e doutorando na Radboud University Nijmegen. Tem o mestrado em Filosofia e Estudos Literários pela Universidade de Antuérpia e pela KU de Leuven. O seu atual projeto de investigação é um estudo comparativo do automatismo no misticismo de Madame Guyon com a literatura surrealista e as artes visuais. Em 2018 publicou (em holandês) Simone Weil. Leven op de rand van de wereld, uma antologia dos escritos espirituais de Weil, que selecionou, anotou e traduziu. Em 2022, Lieven de Maeyer foi co-organizador da conferência anual da Mystical Theology Network sobre ‘Misticismo e as Paixões’, decorrida em Nijmegen.
Resumo da Conferência
Esta comunicação aborda um episódio muitas vezes esquecido da querelle du quiétisme que assolou os círculos religiosos e políticos franceses no final do século XVII: a polémica relativa à interpretação do Cântico dos Cânticos, tida entre o cartuxo Dom Innocent le Masson e Jeanne-Marie Bouvier de la Motte-Guyon, mais conhecida como Madame Guyon.
No centro desta questão esteve o comentário místico de Guyon, publicado em 1687, sobre o Cântico dos Cânticos, que gozou de alguma popularidade entre as freiras cartuxas da região de Grenoble.
Le Masson, que acreditava que o referido texto continha algumas das teses quietistas de Miguel de Molinos (Coelestis Pastor, 1687), então recentemente condenadas, compôs o seu próprio comentário sobre o Cântico dos Cânticos para substituir o de Guyon nos seus mosteiros. Publicado em 1692, sob o título Sujets de méditations sur le cantique des cantiques de Salomon, expliqué selon le sentiment des saints Peres de l’Eglise, o comentário de Le Masson atacava as opiniões de Guyon e de outros nouveaux mystiques, propondo uma leitura alternativa do Cântico dos Cânticos, solidamente enraizada na tradição. Em publicações posteriores, Le Masson continuaria a atacar os quietistas, e Madame Guyon em particular, e as acusações que lhe dirigiu foram fundamentais para provocar o encarceramento de Guyon entre 1695 e 1703.
Esta comunicação aborda dois aspectos da referida controvérsia. Em primeiro lugar, a reconstrução das críticas de Le Masson à leitura do Cântico por Guyon: como o cartuxo nunca abordou diretamente a publicação de Guyon, nem sequer a mencionou pelo nome, tal reconstrução exigirá algumas incursões ao contexto histórico dos intervenientes, para que possam ser identificadas as referências enviesadas à autora. Em segundo lugar, a sustentação de que o desacordo fundamental entre Le Masson e Guyon não está diretamente relacionado com as suas respetivas teologias (místicas), mas sim que esta polémica foi motivada por uma mudança na relação entre tradição, teologia e experiência, ocorrida no início da Modernidade. Em suma, propor-se-á uma leitura desta disputa como um exemplo de um entendimento moderno da experiência mística (por oposição ao dogma, à tradição e à instituição), que, até aos dias de hoje, informa o discurso popular sobre misticismo e religião.
Abstract
This paper investigates an often-overlooked episode in the querelle du quiétisme which raged through French religious and political circles at the end of the seventeenth century: the polemic concerning the interpretation of the Song of Songs between the Carthusian Dom Innocent le Masson and Jeanne-Marie Bouvier de la Motte-Guyon, better known as Madame Guyon.
At the heart of this polemic was Guyon’s mystical commentary on the Song of Songs, published in 1687, which enjoyed some popularity among the Carthusian nuns in the Grenoble area.
Le Masson, who believed this book to contain some of Miguel de Molinos’ recently condemned quietist theses (Coelestis Pastor, 1687), composed his own commentary on the Song of Songs to replace Guyon’s in his monasteries, published in 1692 under the title Sujets de méditations sur le cantique des cantiques de Salomon, expliqué selon le sentiment des saints Peres de l’Eglise. In it, he attacked Guyon’s and other nouveaux mystiques’s views and proposed an alternative reading of the Song of Songs, solidly rooted in the tradition. In further publications, Le Masson would go on to attack the quietists, and Madame Guyon in particular, and his accusations were instrumental in bringing about Guyon’s incarcerations between 1695 and 1703.
I propose to explore two aspects of this polemic in particular. First, I will offer a reconstruction of the criticisms Le Masson’s leveled against Guyon’s reading of the Song. Since Le Masson does not address Guyon’s publication directly, nor mention Guyon by name, such a reconstruction will require a few excursions into both authors’ historical context, so that indirect references to Guyon can be identified. Second, I will argue that the fundamental disagreement between Guyon and Le Masson does not have very much to do with their respective (mystical) theologies. Instead, I claim, the polemic was prompted by a shift in the relation between tradition, theology and experience, which occurred in early Modernity. I propose, therefore, to read the conflict between Guyon and Le Masson as a symptom of the appearance of a typically modern emphasis on mystical experience (as opposed to dogma, tradition and institution), which informs popular discourse on mysticism and religion up to the present day.